quinta-feira, 5 de novembro de 2015

A preta careca


Me deixa no mínimo pensativa ouvir que com o cabelo rapado (agora já só mais curto, porque cresce na velocidade da vida) eu fiquei (muito) mais bonita...

Começando pelos não motivos pelos quais eu rapei meu cabelo:

Não, eu não estou fazendo tratamento para câncer;

Foi extremamente conveniente nesse calor terrível daqui e eu até brinco com isso as vezes, mas não, não rapei por que estava calor;

Também não rapei pra me assumir sapatão, diferentona, rebelde ou feminista para o mundo;

A última vez que eu tive piolho foi com uns sete anos, meu cabelo era bem maior do que estava e eu não rapei por isso;

E não tirei pra lavar (até por que nunca encontrei dificuldade, além de preguiça e uma certa demora,  pra lavar meus crespos);

Pedi pra que rapassem o meu cabelo porque queria estar de cabelo rapado. Porque gosto, acho bonito. Porque queria começar uma fase nova na minha vida, começar "do zero". E porque posso.

Posso porque tenho direito sobre meu corpo.

Posso porque tenho direito sobre meu cabelo.

Mas posso também porque sou bonita.

Metida, não? Não.

Reconhecer privilégios, características, reconhecer-se a si é necessário, é um ato político.

Ok, voltemos à frase.

Muita gente, assim que meu cabelo deu uma crescidinha (ou seja, depois do susto/rejeição iniciais) veio me dizer o quanto eu fiquei bonita ou mais bonita do que antes com o cabelo assim. Isso me faz pensar em algumas coisas: A primeira se refere ao que significa o cabelo para as pessoas negras. Não vou entrar em uma profunda discussão sobre isso, mas afirmo: assumir o cabelo crespo é sinônimo de resistência. Senti isso na pele desde quase sempre, porque não me lembro de já ter realmente gostado de alisar o cabelo (e pouco andei com ele liso). Minha trajetória capilar foi basicamente: Tranças de todos os tipos, escova, tranças, coque, tranças, Black Power grande, Black Power médio, Black Power pequeno, máquina zero. Hoje estou no "cotoquinho", já que tem mais ou menos um mês que "zerei". Assim:







Então, como podem perceber, quase sempre assumi a estética negra de várias formas, mas afirmo com certeza que com o Black Power, especialmente médio e grande, passei pelos momentos de racismo mais marcantes que me recordo. É claro que essa percepção se associa também à minha percepção enquanto mulher negra, sujeita a todas as barbaridades a que estamos sujeitas; enquanto sujeito político e enquanto estudante de psicologia. Na medida em que se sabe mais sobre as coisas, percebe-se mais a elas também, e é claro que nesse contexto o racismo se faz mais evidente. Mas longe de ser só por isso, são realmente dolorosos os olhares, comentários, as risadas e os dedos apontados para mim e meu cabelo. O terminal de ônibus que é sempre uma experiência antropológica interessantíssima, tem sido quase um locus de pesquisa (quem sabe não seja mesmo...). Já paguei a mais pegando ônibus em outros lugares por estar cansada ou fragilizada demais pra enfrentar essas manifestações. Se cansa ter um ônibus inteiro olhando pra você, imagina um terminal lotado?! Mas resisti. Resisto. E por três anos mantive minha linda juba (eu realmente adoro chamar meu cabelo de juba, ainda que tenha um significado depreciativo para algumas pessoas, me deixa bem feliz pensar em mim mesma como uma leoa de juba, além disso eu adoro brincar com signos  tenho ascendente em leão e pra finalizar acho poderosa a ideia da imponência que a juba traz, quédizê!),então, por três anos mantive minha juba bem visível e exposta a todos os tipos de comentários. Mas pra além dos comentários ruins, eu já chorei demais e choro até hoje ao pensar no impacto social dessa decisão. Os olhares encantados, principalmente das meninas, para meu cabelo, os depoimentos de pessoas que resolveram soltar suas lindas madeixas depois de me verem, as discussões que foram iniciadas a partir de comentários sobre meus cabelos... tanta coisa boa! Bem, acho que já deu pra perceber o poder da cabeleira preta, né?! Pois bem. Se meus cachos altos e volumosos afetam a ponto de acionar reações de encanto e de profundo desprezo, significa que têm um poder transformador. São, reforçando o que eu havia dito, ferramentas de resistência. Resisto por que incomodo, incomodo porque resisto. Deixo de incomodar quando elimino minha ferramenta de resistência. (Será?!) Eis, finalmente, o motivo do meu incômodo. Muitas das pessoas que me elogiaram enquanto eu estava com o Black Power (e que eu sabia que era falsidade, porque sim, a gente sabe) ficaram felicíssimas com o novo visual. Por incrível que pareça (pra mim foi), uma negra careca passa muito mais invisível pela existência do que uma negra Black Power. Os terminais de ônibus deixaram de ser um “problema”, os comentários e risadas diminuíram consideravelmente, os elogios de “muito mais bonita que com aquele cabelo” se tornaram quase que diários... “A preta ocupou seu lugar”. É exatamente o que eu ouço quando surge esse tipo de elogio vindos de certas bocas...

Ainda tenho refletido sobre isso e é claro que sei que nem todes que o dizem estão sendo racistas. Mesmo os que estão/são, podem estar dizendo/pensando/sentindo isto inconscientemente, pela naturalidade com que é tratado o “racismo à brasileira”.

 

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