Me deixa no mínimo pensativa ouvir que com o cabelo rapado (agora já só
mais curto, porque cresce na velocidade da vida) eu fiquei (muito) mais
bonita...
Começando pelos não motivos pelos quais eu rapei meu cabelo:
Não, eu não estou fazendo tratamento para câncer;
Foi extremamente conveniente nesse calor terrível daqui e eu até brinco
com isso as vezes, mas não, não rapei por que estava calor;
Também não rapei pra me assumir sapatão, diferentona, rebelde ou
feminista para o mundo;
A última vez que eu tive piolho foi com uns sete anos, meu cabelo era
bem maior do que estava e eu não rapei por isso;
E não tirei pra lavar (até por que nunca encontrei dificuldade, além de
preguiça e uma certa demora, pra lavar
meus crespos);
Pedi pra que rapassem o meu cabelo porque queria estar de cabelo
rapado. Porque gosto, acho bonito. Porque queria começar uma fase nova na minha
vida, começar "do zero". E porque posso.
Posso porque tenho direito sobre meu corpo.
Posso porque tenho direito sobre meu cabelo.
Mas posso também porque sou bonita.
Metida, não? Não.
Reconhecer privilégios, características, reconhecer-se a si é
necessário, é um ato político.
Ok, voltemos à frase.
Muita gente, assim que meu cabelo deu uma crescidinha (ou seja, depois
do susto/rejeição iniciais) veio me dizer o quanto eu fiquei bonita ou mais
bonita do que antes com o cabelo assim. Isso me faz pensar em algumas coisas: A
primeira se refere ao que significa o cabelo para as pessoas negras. Não vou
entrar em uma profunda discussão sobre isso, mas afirmo: assumir o cabelo crespo é sinônimo de resistência. Senti isso na pele desde
quase sempre, porque não me lembro de já ter realmente gostado de alisar o
cabelo (e pouco andei com ele liso). Minha trajetória capilar foi basicamente:
Tranças de todos os tipos, escova, tranças, coque, tranças, Black Power grande,
Black Power médio, Black Power pequeno, máquina zero. Hoje estou no
"cotoquinho", já que tem mais ou menos um mês que "zerei".
Assim:
Então, como podem perceber, quase sempre assumi a estética negra de
várias formas, mas afirmo com certeza que com o Black Power, especialmente
médio e grande, passei pelos momentos de racismo mais marcantes que me recordo.
É claro que essa percepção se associa também à minha percepção enquanto mulher
negra, sujeita a todas as barbaridades a que estamos sujeitas; enquanto sujeito
político e enquanto estudante de psicologia. Na medida em que se sabe mais
sobre as coisas, percebe-se mais a elas também, e é claro que nesse contexto o
racismo se faz mais evidente. Mas longe de ser só por isso, são realmente
dolorosos os olhares, comentários, as risadas e os dedos apontados para mim e
meu cabelo. O terminal de ônibus que é sempre uma experiência antropológica
interessantíssima, tem sido quase um locus de pesquisa (quem sabe não seja
mesmo...). Já paguei a mais pegando ônibus em outros lugares por estar cansada
ou fragilizada demais pra enfrentar essas manifestações. Se cansa ter um ônibus
inteiro olhando pra você, imagina um terminal lotado?! Mas resisti. Resisto. E
por três anos mantive minha linda juba (eu realmente adoro chamar meu cabelo de
juba, ainda que tenha um significado depreciativo para algumas pessoas, me
deixa bem feliz pensar em mim mesma como uma leoa de juba, além disso eu adoro
brincar com signos tenho ascendente em
leão e pra finalizar acho poderosa a ideia da imponência que a juba traz,
quédizê!),então, por três anos mantive minha juba bem visível e exposta a todos
os tipos de comentários. Mas pra além dos comentários ruins, eu já chorei
demais e choro até hoje ao pensar no impacto social dessa decisão. Os olhares
encantados, principalmente das meninas, para meu cabelo, os depoimentos de
pessoas que resolveram soltar suas lindas madeixas depois de me verem, as
discussões que foram iniciadas a partir de comentários sobre meus cabelos...
tanta coisa boa! Bem, acho que já deu pra perceber o poder da cabeleira preta,
né?! Pois bem. Se meus cachos altos e volumosos afetam a ponto de acionar
reações de encanto e de profundo desprezo, significa que têm um poder
transformador. São, reforçando o que eu havia dito, ferramentas de resistência.
Resisto por que incomodo, incomodo porque resisto. Deixo de incomodar quando
elimino minha ferramenta de resistência. (Será?!) Eis, finalmente, o motivo do
meu incômodo. Muitas das pessoas que me elogiaram enquanto eu estava com o
Black Power (e que eu sabia que era falsidade, porque sim, a gente sabe) ficaram
felicíssimas com o novo visual. Por incrível que pareça (pra mim foi), uma
negra careca passa muito mais invisível pela existência do que uma negra Black Power.
Os terminais de ônibus deixaram de ser um “problema”, os comentários e risadas diminuíram
consideravelmente, os elogios de “muito mais bonita que com aquele cabelo” se
tornaram quase que diários... “A preta ocupou seu lugar”. É exatamente o que eu
ouço quando surge esse tipo de elogio vindos de certas bocas...
Ainda tenho refletido sobre isso e é claro que sei que nem todes que o
dizem estão sendo racistas. Mesmo os que estão/são, podem estar
dizendo/pensando/sentindo isto inconscientemente, pela naturalidade com que é
tratado o “racismo à brasileira”.
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