quinta-feira, 5 de novembro de 2015

A careca da preta


Me deixa no mínimo pensativa ouvir que com o cabelo rapado (agora já só mais curto, porque cresce na velocidade da vida) eu fiquei (muito) mais bonita... Já comentei aqui antes sobre o um incômodo sobre essa frase mas outro ponto acerca deste 'elogio' se trata de seus complementos: “dá pra ver seu rosto perfeitamente agora, e ele é lindo mesmo! Eu bem que queria fazer isso, mas não tenho coragem.” Ou “não é todo mundo que fica bonito de cabelo rapado assim não...”

Mulheres! Mulheres do meu coração, rapem! Libertem-se!

Eu realmente queria que fosse fácil dizer, ouvir e fazer isso.

Vamos relembrar os motivos pelos quais eu rapei meu cabelo?

“...Porque queria começar uma fase nova na minha vida, começar "do zero". E porque posso.

Posso porque tenho direito sobre meu corpo.

Posso porque tenho direito sobre meu cabelo (que é meu corpo).

Mas posso também porque sou bonita.”

De fato, se eu tive cinco minutos de preocupação com o resultado estético do meu corte foi muito. Eu me lembro sim de ter pensado: e se minha careca for feia? Mas olhei pra mim mesma por pouco tempo e nunca mais a pergunta veio à tona.

Pessoalmente é muito bom olhar-se no espelho e ver que o rosto, o formato da cabeça, a proporção em relação ao resto do corpo, a simetria não me causarão nenhum tipo de problema. E mais ainda, me trarão privilégios. Em resumo: eu sou bonita.

E eu sei que eu sou. E eu me acho bonita. Muito, até. Mas pensar sobre isso é um tanto perturbador. Explico.

Certa vez, conversando com uma das pessoas que eu mais amo nessa vida, descobri que ela não é satisfeita com seu corpo. E não é uma questão de: ah, hoje eu acordei mal, tô me sentindo horrorosa. É uma questão de: nossa, hoje eu tô bonita. Percebe a diferença? Apesar de estudar psicologia e entender um pouco sobre formação de auto-estima, é sempre um choque pra mim descobrir o quanto as pessoas não se acham bonitas, não gostam de seus corpos (isso por que vou me deter agora a uma questão... sócio estética, digamos assim.). Meu deus, aquela mulher é maravilhosa! Não vou descrevê-la aqui por que não é meu objetivo e não quero expor pessoas, mas acreditem, que mulher linda é aquela preta. Por que raios eu consigo perceber essa beleza em mim e nela e ela não consegue perceber nela? Por que a maioria das pessoas são assim?!

Sim, existe um padrão de beleza imposto que dita como as pessoas devem ser e raramente (se é que é possível, e eu acho que não) alguém consegue alcançar esse padrão, existe todo um incentivo da mídia pra essa busca, existe racismo, machismo, etc, etc, etc. Um monte de lixo. E o resultado disso?

“Eu bem que queria fazer isso, mas não tenho coragem.”

Sério, é muito triste perceber que grande parte da minha coragem em rapar o cabelo vem das centenas de convites pra desfilar que já recebi, pelas quantidades imensas de propostas de participação em anúncios publicitários, dos vários books planejados pela minha mãe e toda uma leva de pessoas aleatórias que mexem com fotografia e da crença coletiva e enraizada de que existem pessoas que “podem” fazer isso por estarem encaixadas em certos padrões, e eu me encaixo nessa categoria estética.

Não gente, eu não pensei nisso tudo antes de pedir pra cortarem. Isso é processo. Um processo lento, divertido por um lado e doloroso por outro, de descoberta de mim e do outro. E não, eu não fico satisfeita em “ser autorizada” a estar neste lugar. Eu posso estar neste lugar, você pode, sua mãe pode, sua tia pode, sua avó pode, sua namorada pode, sua irmã pode e sim, estou falando especialmente para mulheres por que nunca vi muita dificuldade em homens de cortar o cabelo, mas serve para eles também, principalmente se pensarmos em outros pontos, que não necessariamente sejam cabelo rapado. Serve para todos os gêneros. Por que este privilégio que eu tenho, tal como a maioria dos que as pessoas usufruem, é, na verdade um direito de todes. Direito ao corpo, direito à liberdade estética, direito a ser e se expressar no mundo como acharem que devem, desde que para isso não destrua a ninguém. 

Mas é muito triste e me preocupa saber o quanto as imposições sociais estão enraizadas, marcam e mutilam os corpos. E infelizmente eu não conheço ninguém que escape dessas marcas, direta ou indiretamente. Eu rapei o cabelo, mas ainda me envergonho dos pelos nas minhas pernas e axilas, e olha que AMO brincar com os pelos das minhas pernas. Eu rapei o cabelo mas ainda tive medo de sair na rua e ser ridicularizada nas primeiras vezes depois do novo visual. Eu rapei mas ainda não gosto da minha “cintura dupla” e me incomodo um pouco com a minha barriga em algumas das minhas fotos.

Eu sou bonita, e sou humana e ainda estou inserida enquanto mulher, negra e sapatão nesta sociedade que não me quer em muitos espaços e posições (mas vai ter que me encarar). E quer saber?! Eu não deixei de ser negra, não deixei e não vou deixar de lutar pela liberdade dos corpos.

Eu reconheço muitos dos lugares de privilégio que ocupo, mas longe acolhe-los enquanto formas de dominação, quero sim acolhe-los enquanto poder, mas poder de empoderar, poder de influenciar e transformar a quantes eu conseguir. E reconheço também minhas contradições, barreiras que consigo e ainda não consigo transpor. Mas aos poucos vou ressignificando minhas vivências e encarando os obstáculos.

O que ganhei com a careca? Além de sensações deliciosas (visuais e táteis), reforcei minha vigilância em relação às observações “ruins” que faço acerca das outras pessoas mas principalmente, me atentei para os significados dos elogios para quem os recebe direta e indiretamente. E olha só, não incomodar com um Black Power gigante me deixou incomodada a ponto de reavivar meus dedinhos e minha tagarelice. 


Luta, mulher, do jeito que puder!

Rapa a cabeça, mulher! (Se quiser!)

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