Estava almoçando em um fim de
semana quando ouvi uma observação acerca de um delegado, candidato a algum
cargo que lhe confere certo poder de decisão sobre a vida de algumas pessoas e
cuja campanha consiste em prender e/ou matar aqueles que “atrapalharem a ordem
social”. Pois bem, o comentário dizia sobre a necessidade de se ter alguém
assim no governo, “é de gente assim que estamos precisando”.
Passado algum tempo, mudamos de
assunto e começamos a falar sobre uma das cachorras que compõem nossa família,
sobre um passeio que foi realizado recentemente com ela. Após um tempinho de
discussão, saiu o seguinte comentário “ah, gente, mas vamos combinar, ela fica
presa todos os dias o tempo todo, imagina a gente nessa situação, se não íamos
ficar doidos pra sair”.
De raça misturada, ela tem porte
de médio a grande e vive em um apartamento de dois quartos, junto com três
pessoas e outra cachorrinha, de pequeno a médio porte. Sai para passear em uma
freqüência de uma a duas vezes por mês e não faz isso todos os meses.
A criança, como gosto de
pensá-la, sempre que vê a coleira fica bastante agitada, balançando o rabo,
latindo e demonstrando de várias maneiras, muita alegria. Na rua, dificilmente
faz suas necessidades, anda com muita “ansiedade”, puxando fortemente a coleira
(peitoral), tenta se relacionar (tipicamente, brincar ou brigar) com todo
animal que passa na rua e muitas vezes com as pessoas, se assusta com certas
manifestações de automóveis, mas em geral, se não fosse firmemente segurada por
seus responsáveis, poderia ser atingida por algum, uma vez que não conhece os
limites rua-calçada e nem “os riscos” de atropelamento. É bastante cansativo o
passeio com ela, em que tem-se que estar em alta vigilância constantemente, mas
causa um prazer imenso perceber sua alegria.
Sua irmã já é bem diferente. Sem
aprofundar no assunto, pode-se dizer que é mais tímida e comportada, fazendo
questão de estar constantemente em companhia de seu responsável e chegando
mesmo a pedir colo quando há aproximação de outros animais ou pessoas. Mantém
uma postura bastante passiva.
Mas o que elas têm a ver com o
delegado? Antes de responder a essa pergunta, gostaria de destacar alguns
aspectos do comportamento de ambas:
·
Sempre que saem elas agem da mesma forma;
·
Com raras exceções, não fazem suas necessidades
na rua porque foram ensinadas a fazer em um cômodo específico da casa em que
vivem, chamado de “banheiro das cachorras”;
·
Nunca foram adestradas, e, portanto sua agitação
ao andar na rua dificilmente é controlada com gritos ou posturas fisicamente
agressivas, como puxões, tapas etc;
·
Também nunca foram ensinadas a diferenciar
calçada de rua;
·
Nunca foram ensinadas que deveriam esperar a
passagem de um automóvel para que então pudessem atravessar a rua;
·
Sua convivência diária é com cinco pessoas e por
vezes essa é modificada por alguma visita. O comportamento delas ante as
visitas varia bastante em decorrência da freqüência da visita, do modo como ela
as trata, do tempo de visitação etc;
·
A cachorra mais “passiva”, por ser menor, fica
mais no colo e sempre que é necessário é defendida a partir de uma postura
“paparicadora” das pessoas da casa;
·
Quando ocorre de as férias das pessoas da
família serem no mesmo tempo ou bastante próximas, elas saem mais de casa,
nesses momentos de maior freqüência de saída, especificamente, percebe-se uma
mudança em seu comportamento: A mais agitada costuma perder um pouco da
agitação, tornando a condução mais fácil e proporcionando maiores
possibilidades de realização de brincadeiras ao ar livre, por exemplo. A outra
arrisca-se um pouco mais, chegando a acompanhar com maior tranqüilidade os
movimentos da primeira.
Ok, agora, pra você que já
encontrou ou não relação entre o delegado e as cachorras, vamos lá:
Cobra-se constantemente, uma
postura rígida e violenta em relação às e aos “infratores, criminosas,
bandidos, viciadas...” presentes em nossa sociedade, afirmando que os problemas
serão resolvidos quando efetivamente essas pessoas se mantiverem presas, cumprindo
o prazo “correto” de pena ou estiverem mortas. O grande problema consistiria
então na impunidade e resolvendo o problema da impunidade, resolver-se-ia o
problema da insegurança. E a impunidade aparece pela falta de rigidez vinda dos
executores da lei.
Mas será que esta relação é, de
fato, verdadeira?
Não pretendo, neste momento,
argumentar utilizando as milhares de pesquisas realizadas sobre a reincidência
(quem já foi preso, é preso de novo), sofrimento de presidiárias, países com
número reduzido de presídios – e de violência entre tantas outras que comprovam
o que vou falar a diante, quero, como em um papo de domingo, que você que está
lendo vá acompanhando um esqueminha lógico e simples que formulei. Vamos falar
sobre aprendizagem?
Então, me acompanhe:
As cachorras passam, de 365 dias,
aproximadamente 341 dias fechadas dentro de um apartamento e esqueci de dizer
antes, há uns 5 ou 6 anos.
Um sujeito que cometeu algum
crime e está “cumprindo direito” a pena, passa aproximadamente o mesmo tempo ou
talvez mais, dentro de uma cadeia, durante 5 ou seis anos.
As cachorras recebem comida,
água, têm lugar para dormir confortavelmente e são tratadas com bons afetos:
muito carinho, atenção, e até mesmo, paparicação. As vezes, é claro, com
braveza.
O sujeito que está preso recebe
(na maioria dos casos) comida, água, muitas vezes tem que competir por um lugar
um pouco menos ruim que o chão para dormir e é tratado predominantemente com
alguns afetos específicos: violência, indiferença, desejo sexual e por vezes, um
pouco de carinho vindo de algum ou alguma companheiro ou companheira de cela ou
visita.
Ambas as cachorras ao sair na
rua, agem com extrema alegria. Uma demonstrando por meio da agitação e
interesse em tocar, cheirar, lamber, latir para ou reagir de alguma forma a
todo estímulo que lhe chame a atenção, sem medir, ainda que num nível
operacional, as conseqüências, se colocando até mesmo em situação de perigo
real. A outra, discretamente ao abanar o rabo e por vezes até mesmo puxar a
coleira, tal como a primeira. Porém age com um medo quase constante, reagindo
com passividade em busca de defender-se de qualquer coisa que lhe chame a
atenção e seja desconhecida.
Ao sair da prisão, a reação de um
ser que passou grande parte da vida longe de outros tipos de relações humanas
que não as da cadeia, tende a agir de duas formas principais, com poucas
exceções:
Sentem-se extremamente
“empolgadxs” com a liberdade, tentando desfrutar de tudo que a vida oferece – e
a vida oferece muita coisa.
Sentem-se perdidxs, amedrontadxs,
deslocadxs, porque já perderam o costume de estar naquela sociedade, tendo
construído modos de vivência (pensamento, ações, atitudes...) específicos da
situação de cárcere.
Analisemos então, agora sem
cachorras, as duas formas apresentadas e dessa vez vou usar um pouquinho de
pesquisas, coisa rápida (mas se quiser pular essa parte, lembre-se das pessoas
que mendigam, dormem nas ruas etc que você vê por aí ,segura essa imagem e pula
pro pontinho):
* “O número de pessoas presas no
Brasil é equivalente a seis Maracanãs lotados: 514.582 presos.” = gente
demais;
*O Artigo 88 (da Lei de Execução
Penal – LEP) “assegura ao detento no mínimo seis metros quadrados
de espaço na cela. Porém, na atualidade, na maioria das vezes ele tem só
de 70 centímetros a um metro.” = espaço de menos;
* “nove crimes são
responsáveis por 94% dos aprisionamentos, entre eles o tráfico de drogas,
com 125 mil presos, e os crimes patrimoniais – furto, roubo e estelionato
- com 240 mil.” = os crimes consistem, em sua maioria, na busca por obtenção de
bens, seja dinheiro ou propriedades;
* Outro levantamento feito pela
pesquisa mostra que mais de 134 mil presos têm de 18 a 24 anos. Os negros
representam 275 mil, quase 60% do total, de acordo com o Departamento
Penitenciário Nacional (Depen). = jovens e negxs;
* A maioria absoluta é formada
por pessoas pobres, da classe baixa. Setenta por cento deles não
completaram o ensino fundamental e 10,5% são analfabetas. Só
dezoito por cento desenvolve alguma atividade educativa e 72% vive em total ociosidade. =
Baixa ou nenhuma escolarização fora do presídio, nenhuma atividade produtiva
dentro dele;
- Ou seja: “criminoso” no Brasil é preto, pobre e jovem. Presídio no Brasil não mantém essas pessoas longe da violência, menos ainda as conscientizam sobre ela ou fornecem meios para que seja evitada ou combatida.
Bom, acho que já deu pra entender
um bocado do que quero dizer, mas vou deixar bem explicadinho e de uma forma um
pouco mais direta agora porque já to cansada. Seguinte:
- As pessoas fazem o que elas
sabem fazer e não fazem o que não sabem. Parece óbvio, mas as pessoas continuam
repetindo “tem favelado que vai pro crime e tem favelado que ‘subiu na vida é
uma questão de escolha”. Sim, pessoa, teve pobre que conviveu a vida toda com
violência e as oportunidades que teve de se dar bem (lê-se sobreviver, ter um
status diferenciado, conseguir os bens que desejou, etc), foram em um cenário
de violência. Gente, ganhar rios de dinheiro por mês e ainda ser respeitado e
obedecido não é uma coisa maravilhosa? Ser dono do morro pode ser uma delícia! Por
outro lado, teve pobre que conviveu a vida toda com violência, mas no dia em
que fugiu de casa, deu de cara com uma galera que curtia leitura, música, ou
deu de cara com uma ONG, ou recebeu, vejam só, uma proposta de emprego! A primeira pessoa, nasceu, cresceu e teve
todo seu aprendizado com base na violência. Inclusive o modo como aprendeu a
enfrentá-la, foi reproduzindo. A segunda pessoa, nasceu, cresceu e teve parte
de seu aprendizado com base na violência e parte com base em outras coisas. O
modo como aprendeu a enfrentar a violência foi bem diferente.
- Quando alguém é retirado a
força de seu ambiente de costume e enfiado em um ambiente desconhecido,pequeno,
lotado, sujo, violento e sem possibilidades de saída e dentro desse ambiente
não há possibilidades de atividades, chegando a passar o dia todo sentado
olhando para uma parede,caro leitor, cara
leitora, dá merda. Ainda mais quando todo o seu aprendizado anterior
teve como base a agressão, a competitividade e a falta de diálogo e nesse
espaço só tem pessoas com o mesmo aprendizado que o seu. Se “do lado de fora” a
aprendizagem já foi assim e deu errado, do “lado de dentro” melhora? Não. Não
melhora. No mínimo se mantém e no máximo piora.
- Tá, agora tira essa pessoa, com
toda essa trajetória, de dentro da prisão e joga no mundo de novo. Lembrando
que essa pessoa entrou pobre, preta analfabeta, violenta e violentada e vai
sair pobre, preta, analfabeta e ainda mais violentada. Mas agora ela pode estar
sem moradia, pode ter perdido a família, se é que tinha amigos, provavelmente
já não os tem mais e já se acostumou com a dinâmica do presídio. Quantas
oportunidades de estudo e/ou emprego vai ter? Quão “bem” vai conseguir
estabelecer laços sociais? Quão rápido vai se adaptar a nova rotina, pensando,
por exemplo, que conseguiu um emprego (depois de 5 ou 6 anos sem fazer
absolutamente nada)? Quanto seu corpo – e “sua mente” irá se adaptar ao
ambiente extraprisional?
Enfim, não é frescura nem “defesa
de criminoso”. É que a mim e a algumas pessoas que conheço parece tão óbvio que
essa postura de aprisionamento e isolamento é ineficiente... E não vou entrar
em detalhes sobre isso mas essas pessoas são apenas as que são mais diretamente
violentadas com toda essa situação. Há aquelas que se aproveitam das brechas
que esse sistema produz para cometer crimes sem que tenham reais necessidades
objetivas para isso, há as pessoas que estão tentando viver “honestamente” e
são assaltadas, violentadas, etc, e há as que se promovem com essa situação,
como no caso do delegado citado, mas de inúmeros outros sujeitos por aí, e que
não percebem, graças aos benefícios que isso traz (dinheiro, prestígio,
respeito...), o quanto também são vítimas.
É realmente mais prazeroso olhar
para uma cidade e não ver pessoas em situação de miséria, não ter medo de
perder algum bem ou a própria vida, mas conquistar isso através da violência ou
matança de pessoas é no mínimo incoerente. No mínimo. Ainda mais quando existem
possibilidades de fazer diferente.
1) “Ah, mas ninguém tá nem aí pra
escola mesmo, então vamos investir em cadeia”
2) “Ah, mas quem já fez alguma
coisa tem que pagar por isso”
3) “Ah, mas esse aí não tem jeito
mais não, nem quer ter”
4) “Ah, mas é muito mais rápido
matar/prender do que ‘educar’”.
Dava pra colocar mais frases, mas
to cansando. Se pá elas aparecem nos comentários e eu respondo. Enfim:
1) Se a cobrança popular é maior
por cadeias e enquanto as cadeias são exigidas como uma forma barata e rápida
de apartar “lixo de gente”, o investimento em cadeias será maior do que em
escolas. E conseqüentemente maior que em educação. Pode não parecer, mas o
desejo de maior parte da população é por cadeia. E responder que a solução pra
pobreza é educação e pra violência é cadeia, é continua evidenciando o desejo
que se tem por esse apartheid social.
Vale lembrar que o sistema
prisional é lucrativo e tem se tornado cada dia mais, com sua constante
terceirização. Não é só o povão que quer
ver gente encaixotada.
2) Se chegou a fazer alguma
coisa, é por algum motivo no caminho. Mas indo diretamente ao ponto, o
“pagamento de uma dívida” tem diversas maneiras de ser realizado. Há alguns
poucos sistemas prisionais que, mesmo isolando o interno de seu convívio
diário, oferecem a ele oportunidades de (re)socialização com acesso à educação,
trabalho, lazer e tratamentos. Ninguém precisa aprender na porrada.
3) Já pensou que emprego pode
resolver o problema de falta de dinheiro? Já pensou que valorização da
expressão cultural (re)produzida por aquela pessoa pode resolver seu problema
de carência de respeito? Já pensou também que ouvir o que uma pessoa tem a
dizer pode resolver o problema de ela querer se expressar, por exemplo,
batendo? Ademais, se a pessoa não sabe de fato que fez alguma coisa errada ou
ruim, “pagar” por aquilo é só mais uma chinelada. Dói, mas passa. De fato,
aprendizagem é algo que demanda tempo e esforço tanto de quem aprende (e está
ensinando) quanto de quem ensina (e está aprendendo). Demanda oportunidade e
respeito ao tempo de cada um. A impressão que temos de que as pessoas não tem
mais jeito, vem exatamente da falta de investimento nelas pra que mudem. É
muito fácil apontar para a reincidência de certas pessoas na cadeia, mas assim
que acaba a reportagem no jornal, o máximo que é feito é criticar a “folga” e a
“falta de vergonha na cara” dessas pessoas. Dificilmente se vê atitudes
individuais das pessoas em prol das
outras e menos ainda se vê atitudes governamentais que sejam efetivas para a
mudança do quadro.
4) Já comentei bastante sobre
isso anteriormente, mas gostaria de
fazer uma última observação: Matar uma pessoa é matar, João, filho de
dona Maria, Neto de seu Francisco, pai da Antônia, que cresceu no Bairro X e
namorou com José durante alguns anos, antes de conhecer Cida. João é negro,
gostava de samba e rap e sabia dançar muito bem. Muitas vezes ajudou algumas
crianças de sua comunidade a fazer pipa. Começou no tráfico ao ver Antônia
doente e dependente da enrolação do SUS e a partir do tráfico, pôde pagar o seu
tratamento e comprar um Iphone. Matar uma pessoa é matar uma história. E para
além disso, matar uma pessoa consistem em buscar paz por meio da prática da
violência e sem a reivindicação de direitos nem pra você e nem pra aquela
pessoa. É também banalizar a situação mais extrema de interferência na vida do
outro, trazendo uma maior tranqüilidade para a interferência em outros âmbitos,
cerceando autonomias. E assim, se formos matar a todos que estão de alguma
forma incomodando... pois é...
Por fim, e agora é fim mesmo, só
queria reforçar que apresentei poucos tópicos aqui. A discussão é muito mais
longa e envolvem muitas outras coisas, relacionadas, por exemplo, a machismo,
racismo, sistema de educação etc. Mas gostaria de encerrar perguntando e
propondo a vocês:
É mesmo desse tipo de político
que estamos precisando?
Tente, e não só nessa situação,
se colocar no lugar dos outros atores sociais. Mas tente ir o mais longe
possível. Relacione suas dificuldades e oportunidades com as dessas pessoas, o
ambiente em que vivem... enfim, façam o que é chamado de exercício de
alteridade.
E mais, depois disso pensem no
que podem fazer enquanto indivíduos e enquanto coletivo. Lembrem-se das
conquistas sociais e de como foram alcançadas, perguntem, procurem na internet
ou outros meios informações sobre lutas e conquistas, duvidem, questionem...
enfim, reparem bem: é possível mudar.