domingo, 28 de setembro de 2014

Nota sobre o “tipo de político que estamos precisando”




Estava almoçando em um fim de semana quando ouvi uma observação acerca de um delegado, candidato a algum cargo que lhe confere certo poder de decisão sobre a vida de algumas pessoas e cuja campanha consiste em prender e/ou matar aqueles que “atrapalharem a ordem social”. Pois bem, o comentário dizia sobre a necessidade de se ter alguém assim no governo, “é de gente assim que estamos precisando”.
Passado algum tempo, mudamos de assunto e começamos a falar sobre uma das cachorras que compõem nossa família, sobre um passeio que foi realizado recentemente com ela. Após um tempinho de discussão, saiu o seguinte comentário “ah, gente, mas vamos combinar, ela fica presa todos os dias o tempo todo, imagina a gente nessa situação, se não íamos ficar doidos pra sair”.
De raça misturada, ela tem porte de médio a grande e vive em um apartamento de dois quartos, junto com três pessoas e outra cachorrinha, de pequeno a médio porte. Sai para passear em uma freqüência de uma a duas vezes por mês e não faz isso todos os meses.
A criança, como gosto de pensá-la, sempre que vê a coleira fica bastante agitada, balançando o rabo, latindo e demonstrando de várias maneiras, muita alegria. Na rua, dificilmente faz suas necessidades, anda com muita “ansiedade”, puxando fortemente a coleira (peitoral), tenta se relacionar (tipicamente, brincar ou brigar) com todo animal que passa na rua e muitas vezes com as pessoas, se assusta com certas manifestações de automóveis, mas em geral, se não fosse firmemente segurada por seus responsáveis, poderia ser atingida por algum, uma vez que não conhece os limites rua-calçada e nem “os riscos” de atropelamento. É bastante cansativo o passeio com ela, em que tem-se que estar em alta vigilância constantemente, mas causa um prazer imenso perceber sua alegria.
Sua irmã já é bem diferente. Sem aprofundar no assunto, pode-se dizer que é mais tímida e comportada, fazendo questão de estar constantemente em companhia de seu responsável e chegando mesmo a pedir colo quando há aproximação de outros animais ou pessoas. Mantém uma postura bastante passiva.
Mas o que elas têm a ver com o delegado? Antes de responder a essa pergunta, gostaria de destacar alguns aspectos do comportamento de ambas:
·         Sempre que saem elas agem da mesma forma;
·         Com raras exceções, não fazem suas necessidades na rua porque foram ensinadas a fazer em um cômodo específico da casa em que vivem, chamado de “banheiro das cachorras”;
·         Nunca foram adestradas, e, portanto sua agitação ao andar na rua dificilmente é controlada com gritos ou posturas fisicamente agressivas, como puxões, tapas etc;
·         Também nunca foram ensinadas a diferenciar calçada de rua;
·         Nunca foram ensinadas que deveriam esperar a passagem de um automóvel para que então pudessem atravessar a rua;
·         Sua convivência diária é com cinco pessoas e por vezes essa é modificada por alguma visita. O comportamento delas ante as visitas varia bastante em decorrência da freqüência da visita, do modo como ela as trata, do tempo de visitação etc;
·         A cachorra mais “passiva”, por ser menor, fica mais no colo e sempre que é necessário é defendida a partir de uma postura “paparicadora” das pessoas da casa;
·         Quando ocorre de as férias das pessoas da família serem no mesmo tempo ou bastante próximas, elas saem mais de casa, nesses momentos de maior freqüência de saída, especificamente, percebe-se uma mudança em seu comportamento: A mais agitada costuma perder um pouco da agitação, tornando a condução mais fácil e proporcionando maiores possibilidades de realização de brincadeiras ao ar livre, por exemplo. A outra arrisca-se um pouco mais, chegando a acompanhar com maior tranqüilidade os movimentos da primeira.
Ok, agora, pra você que já encontrou ou não relação entre o delegado e as cachorras, vamos lá:
Cobra-se constantemente, uma postura rígida e violenta em relação às e aos “infratores, criminosas, bandidos, viciadas...” presentes em nossa sociedade, afirmando que os problemas serão resolvidos quando efetivamente essas pessoas se mantiverem presas, cumprindo o prazo “correto” de pena ou estiverem mortas. O grande problema consistiria então na impunidade e resolvendo o problema da impunidade, resolver-se-ia o problema da insegurança. E a impunidade aparece pela falta de rigidez vinda dos executores da lei.
Mas será que esta relação é, de fato, verdadeira?
Não pretendo, neste momento, argumentar utilizando as milhares de pesquisas realizadas sobre a reincidência (quem já foi preso, é preso de novo), sofrimento de presidiárias, países com número reduzido de presídios – e de violência entre tantas outras que comprovam o que vou falar a diante, quero, como em um papo de domingo, que você que está lendo vá acompanhando um esqueminha lógico e simples que formulei. Vamos falar sobre aprendizagem?
Então, me acompanhe:
As cachorras passam, de 365 dias, aproximadamente 341 dias fechadas dentro de um apartamento e esqueci de dizer antes, há uns 5 ou 6 anos.
Um sujeito que cometeu algum crime e está “cumprindo direito” a pena, passa aproximadamente o mesmo tempo ou talvez mais, dentro de uma cadeia, durante 5 ou seis anos.
As cachorras recebem comida, água, têm lugar para dormir confortavelmente e são tratadas com bons afetos: muito carinho, atenção, e até mesmo, paparicação. As vezes, é claro, com braveza.
O sujeito que está preso recebe (na maioria dos casos) comida, água, muitas vezes tem que competir por um lugar um pouco menos ruim que o chão para dormir e é tratado predominantemente com alguns afetos específicos: violência, indiferença, desejo sexual e por vezes, um pouco de carinho vindo de algum ou alguma companheiro ou companheira de cela ou visita.
Ambas as cachorras ao sair na rua, agem com extrema alegria. Uma demonstrando por meio da agitação e interesse em tocar, cheirar, lamber, latir para ou reagir de alguma forma a todo estímulo que lhe chame a atenção, sem medir, ainda que num nível operacional, as conseqüências, se colocando até mesmo em situação de perigo real. A outra, discretamente ao abanar o rabo e por vezes até mesmo puxar a coleira, tal como a primeira. Porém age com um medo quase constante, reagindo com passividade em busca de defender-se de qualquer coisa que lhe chame a atenção e seja desconhecida.
Ao sair da prisão, a reação de um ser que passou grande parte da vida longe de outros tipos de relações humanas que não as da cadeia, tende a agir de duas formas principais, com poucas exceções:
Sentem-se extremamente “empolgadxs” com a liberdade, tentando desfrutar de tudo que a vida oferece – e a vida oferece muita coisa.
Sentem-se perdidxs, amedrontadxs, deslocadxs, porque já perderam o costume de estar naquela sociedade, tendo construído modos de vivência (pensamento, ações, atitudes...) específicos da situação de cárcere.
Analisemos então, agora sem cachorras, as duas formas apresentadas e dessa vez vou usar um pouquinho de pesquisas, coisa rápida (mas se quiser pular essa parte, lembre-se das pessoas que mendigam, dormem nas ruas etc que você vê por aí ,segura essa imagem e pula pro pontinho):
* “O número de pessoas presas no Brasil é equivalente a seis Maracanãs lotados: 514.582 presos.” = gente demais;
*O Artigo 88 (da Lei de Execução Penal – LEP) “assegura ao detento no mínimo seis metros quadrados de espaço na cela. Porém, na atualidade, na maioria das vezes ele tem só de 70 centímetros a um metro.” = espaço de menos;
* “nove crimes são responsáveis por 94% dos aprisionamentos, entre eles o tráfico de drogas, com 125 mil presos, e os crimes patrimoniais – furto, roubo e estelionato - com 240 mil.” = os crimes consistem, em sua maioria, na busca por obtenção de bens, seja dinheiro ou propriedades;
* Outro levantamento feito pela pesquisa mostra que mais de 134 mil presos têm de 18 a 24 anos. Os negros representam 275 mil, quase 60% do total, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen). = jovens e negxs;
* A maioria absoluta é formada por pessoas pobres, da classe baixa. Setenta por cento deles não completaram o ensino fundamental e 10,5% são analfabetas. Só dezoito por cento desenvolve alguma atividade educativa e 72% vive em total ociosidade. = Baixa ou nenhuma escolarização fora do presídio, nenhuma atividade produtiva dentro dele;

  •   Ou seja: “criminoso” no Brasil é preto, pobre e jovem. Presídio no Brasil não mantém essas pessoas longe da violência, menos ainda as conscientizam sobre ela ou fornecem meios para que seja evitada ou combatida.

Bom, acho que já deu pra entender um bocado do que quero dizer, mas vou deixar bem explicadinho e de uma forma um pouco mais direta agora porque já to cansada. Seguinte:
- As pessoas fazem o que elas sabem fazer e não fazem o que não sabem. Parece óbvio, mas as pessoas continuam repetindo “tem favelado que vai pro crime e tem favelado que ‘subiu na vida é uma questão de escolha”. Sim, pessoa, teve pobre que conviveu a vida toda com violência e as oportunidades que teve de se dar bem (lê-se sobreviver, ter um status diferenciado, conseguir os bens que desejou, etc), foram em um cenário de violência. Gente, ganhar rios de dinheiro por mês e ainda ser respeitado e obedecido não é uma coisa maravilhosa? Ser dono do morro pode ser uma delícia! Por outro lado, teve pobre que conviveu a vida toda com violência, mas no dia em que fugiu de casa, deu de cara com uma galera que curtia leitura, música, ou deu de cara com uma ONG, ou recebeu, vejam só, uma proposta de emprego!  A primeira pessoa, nasceu, cresceu e teve todo seu aprendizado com base na violência. Inclusive o modo como aprendeu a enfrentá-la, foi reproduzindo. A segunda pessoa, nasceu, cresceu e teve parte de seu aprendizado com base na violência e parte com base em outras coisas. O modo como aprendeu a enfrentar a violência foi bem diferente.
- Quando alguém é retirado a força de seu ambiente de costume e enfiado em um ambiente desconhecido,pequeno, lotado, sujo, violento e sem possibilidades de saída e dentro desse ambiente não há possibilidades de atividades, chegando a passar o dia todo sentado olhando para uma parede,caro leitor, cara  leitora, dá merda. Ainda mais quando todo o seu aprendizado anterior teve como base a agressão, a competitividade e a falta de diálogo e nesse espaço só tem pessoas com o mesmo aprendizado que o seu. Se “do lado de fora” a aprendizagem já foi assim e deu errado, do “lado de dentro” melhora? Não. Não melhora. No mínimo se mantém e no máximo piora.
- Tá, agora tira essa pessoa, com toda essa trajetória, de dentro da prisão e joga no mundo de novo. Lembrando que essa pessoa entrou pobre, preta analfabeta, violenta e violentada e vai sair pobre, preta, analfabeta e ainda mais violentada. Mas agora ela pode estar sem moradia, pode ter perdido a família, se é que tinha amigos, provavelmente já não os tem mais e já se acostumou com a dinâmica do presídio. Quantas oportunidades de estudo e/ou emprego vai ter? Quão “bem” vai conseguir estabelecer laços sociais? Quão rápido vai se adaptar a nova rotina, pensando, por exemplo, que conseguiu um emprego (depois de 5 ou 6 anos sem fazer absolutamente nada)? Quanto seu corpo – e “sua mente” irá se adaptar ao ambiente extraprisional?
Enfim, não é frescura nem “defesa de criminoso”. É que a mim e a algumas pessoas que conheço parece tão óbvio que essa postura de aprisionamento e isolamento é ineficiente... E não vou entrar em detalhes sobre isso mas essas pessoas são apenas as que são mais diretamente violentadas com toda essa situação. Há aquelas que se aproveitam das brechas que esse sistema produz para cometer crimes sem que tenham reais necessidades objetivas para isso, há as pessoas que estão tentando viver “honestamente” e são assaltadas, violentadas, etc, e há as que se promovem com essa situação, como no caso do delegado citado, mas de inúmeros outros sujeitos por aí, e que não percebem, graças aos benefícios que isso traz (dinheiro, prestígio, respeito...), o quanto também são vítimas.
É realmente mais prazeroso olhar para uma cidade e não ver pessoas em situação de miséria, não ter medo de perder algum bem ou a própria vida, mas conquistar isso através da violência ou matança de pessoas é no mínimo incoerente. No mínimo. Ainda mais quando existem possibilidades de fazer diferente.
1) “Ah, mas ninguém tá nem aí pra escola mesmo, então vamos investir em cadeia”
2) “Ah, mas quem já fez alguma coisa tem que pagar por isso”
3) “Ah, mas esse aí não tem jeito mais não, nem quer ter”
4) “Ah, mas é muito mais rápido matar/prender do que ‘educar’”.
Dava pra colocar mais frases, mas to cansando. Se pá elas aparecem nos comentários e eu respondo. Enfim:
1) Se a cobrança popular é maior por cadeias e enquanto as cadeias são exigidas como uma forma barata e rápida de apartar “lixo de gente”, o investimento em cadeias será maior do que em escolas. E conseqüentemente maior que em educação. Pode não parecer, mas o desejo de maior parte da população é por cadeia. E responder que a solução pra pobreza é educação e pra violência é cadeia, é continua evidenciando o desejo que se tem por esse apartheid social.
Vale lembrar que o sistema prisional é lucrativo e tem se tornado cada dia mais, com sua constante terceirização. Não é só  o povão que quer ver gente encaixotada.
2) Se chegou a fazer alguma coisa, é por algum motivo no caminho. Mas indo diretamente ao ponto, o “pagamento de uma dívida” tem diversas maneiras de ser realizado. Há alguns poucos sistemas prisionais que, mesmo isolando o interno de seu convívio diário, oferecem a ele oportunidades de (re)socialização com acesso à educação, trabalho, lazer e tratamentos. Ninguém precisa aprender na porrada.
3) Já pensou que emprego pode resolver o problema de falta de dinheiro? Já pensou que valorização da expressão cultural (re)produzida por aquela pessoa pode resolver seu problema de carência de respeito? Já pensou também que ouvir o que uma pessoa tem a dizer pode resolver o problema de ela querer se expressar, por exemplo, batendo? Ademais, se a pessoa não sabe de fato que fez alguma coisa errada ou ruim, “pagar” por aquilo é só mais uma chinelada. Dói, mas passa. De fato, aprendizagem é algo que demanda tempo e esforço tanto de quem aprende (e está ensinando) quanto de quem ensina (e está aprendendo). Demanda oportunidade e respeito ao tempo de cada um. A impressão que temos de que as pessoas não tem mais jeito, vem exatamente da falta de investimento nelas pra que mudem. É muito fácil apontar para a reincidência de certas pessoas na cadeia, mas assim que acaba a reportagem no jornal, o máximo que é feito é criticar a “folga” e a “falta de vergonha na cara” dessas pessoas. Dificilmente se vê atitudes individuais das pessoas em prol  das outras e menos ainda se vê atitudes governamentais que sejam efetivas para a mudança do quadro.
4) Já comentei bastante sobre isso anteriormente, mas gostaria de  fazer uma última observação: Matar uma pessoa é matar, João, filho de dona Maria, Neto de seu Francisco, pai da Antônia, que cresceu no Bairro X e namorou com José durante alguns anos, antes de conhecer Cida. João é negro, gostava de samba e rap e sabia dançar muito bem. Muitas vezes ajudou algumas crianças de sua comunidade a fazer pipa. Começou no tráfico ao ver Antônia doente e dependente da enrolação do SUS e a partir do tráfico, pôde pagar o seu tratamento e comprar um Iphone. Matar uma pessoa é matar uma história. E para além disso, matar uma pessoa consistem em buscar paz por meio da prática da violência e sem a reivindicação de direitos nem pra você e nem pra aquela pessoa. É também banalizar a situação mais extrema de interferência na vida do outro, trazendo uma maior tranqüilidade para a interferência em outros âmbitos, cerceando autonomias. E assim, se formos matar a todos que estão de alguma forma incomodando... pois é...
Por fim, e agora é fim mesmo, só queria reforçar que apresentei poucos tópicos aqui. A discussão é muito mais longa e envolvem muitas outras coisas, relacionadas, por exemplo, a machismo, racismo, sistema de educação etc. Mas gostaria de encerrar perguntando e propondo a vocês:
É mesmo desse tipo de político que estamos precisando?
Tente, e não só nessa situação, se colocar no lugar dos outros atores sociais. Mas tente ir o mais longe possível. Relacione suas dificuldades e oportunidades com as dessas pessoas, o ambiente em que vivem... enfim, façam o que é chamado de exercício de alteridade.
E mais, depois disso pensem no que podem fazer enquanto indivíduos e enquanto coletivo. Lembrem-se das conquistas sociais e de como foram alcançadas, perguntem, procurem na internet ou outros meios informações sobre lutas e conquistas, duvidem, questionem... enfim, reparem bem: é possível mudar.