sexta-feira, 27 de maio de 2016

Silêncio

Com frequência temos, eu e minha mãe (e com certeza a rua toda de moradores), sons estranhos, que não consigo identificar mas costumo descrever como mais "baixos que tiro de canhão e mais altos que tiro de revólver". Aconteceu a primeira vez a uns três dias. Foram três, espaçados entre si. Pássaros voando espantados, minha gata, Bia, de olhos arregalados me perguntava visualmente o que era aquilo. Nos assustamos, não sou de me assustar mas foi inevitável. Dia seguinte novamente. Comentei no Facebook e ninguém mais além da minha irmã, que mora no andar inferior, conseguiu ouvir. Ninguém, por conseguinte, sabia dizer o que era. Hoje pela manhã acordei com eles, um, depois outro seguido de outro bem próximo, e por fim mais um. Acordei e por incrível que pareça senti raiva por pouco tempo (odeio ser acordada). Comecei a imaginar o que poderia ser. Molotov dentro das grandes lixeiras metálicas? Fogos de artifício daqueles que só fazem barulho e fedor? Uma nova arma? Fiquei um tempo imaginando essas possibilidades. Viajei muito com o molotov. Estava divertido. Passada mais ou menos uma hora, outros pensamentos já haviam irrompido em meu agitado campo imaginário, decidi levantar da cama. Algum tempo depois foi a vez da minha mãe. Pouca prosa e o assunto já veio à tona. "Ouviu o barulho de novo?" "Ah, mas não tem como não ouvir né?!" "Quem será que está fazendo isso?" "Ah, mãe, não faço ideia mas imagino"

Veio tão abruptamente que pela primeira vez na vida que me lembre parei imediatamente minha fala, sem o menor sinal de continuidade, exatamente no momento em que estava. Sinceramente não me lembro de ter sido tomada por lembranças de forma tão brusca outrora. Foi como se as memórias me tivessem socado os lábios antes que eu pudesse ver sua bruta mão se aproximando.

Parque Oeste Industrial.

Primeiras "missões" de desocupação.
Sirenes das viaturas ligadas, barulhos ensurdecedores e enlouquecedores durante toda a noite para que não houvesse descanso, para que não houvesse tranquilidade, para que não houvesse paz.
Crianças, homens, mulheres, velhos, animais, velhas, jovens, bebês, recém nascidos, bisavós, trisavôs, netas, genros, noras, amigos, primos, filhos, filhotes... 
Ruídos, muitos ruídos para que não haja descanso.
Para que não haja descanso.
Para que não haja descanso.
Não haja descanso.
Não haja descanso.
Não haja.
Não haja.
Não aja.
Não aja.
Não.

Poucos (sobre)viveram.
Poucos (sobre)vivem.


Eu podia parar por aqui. É mais meu estilo e considero mais poético.
Mas eu preciso dizer o quanto me senti feliz ao imaginar meus vizinhos acordando com aquele som infernal depois daquilo.
Eu preciso dizer que quero mais é que se fodam, que se quiserem descanso, enfiem as malditas panelas, vuvuzelas, apitos e gargantas que ruidosamente berraram pela conservação do patriarcado, pelo 33x1, pela morte aos negros, pela tortura a mulheres e homossexuais e tantas outras desgraças que a pouco estavam apoiando, orelha a dentro.
Eu quero mais é que esse som ecoe, e que se for preciso, com ele eu vá.

...................................................................................................................................................................

Que irônica a vida. 
Começando a escrever esse texto, ouço berros próximos de casa. Nada que eu conseguisse entender até a clara (mas não branca), audível (e espero que ruidosa), grotesca (e fortemente marcante) voz não sóbria que alertava: EU VOLTEI!



Nenhum comentário:

Postar um comentário